terça-feira, 13 de março de 2007

Eternamente Gerônimo da Adefal: Homenagem da Coordenadora Geral da CORDE

Local: Brasilia, DF
Data: 12/03/07
A doce força de um homem lutador nos acalma neste momento. Lágrimas teimosas, ao invés de embaçar nossas lembranças, nos fazem recordar uma das mais brilhantes trajetórias de vida, de valores éticos e de iniciativas. Cada idéia de Gerônimo era muito bem transformada em prática e sabiamente conduzida para desenvolver a cidadania dos mais afastados das oportunidades, tanto pela deficiência, como pela pobreza existente nos municípios das Alagoas.
Os novos projetos davam certo porque mantinham a simplicidade inteligente de Gerônimo. O menino, nascido com limitações congênitas da talidomida, desafiou, antes de tudo, a sua própria imagem, as dificuldades físicas para as tarefas mais cotidianas e o acesso à escola e ao trabalho. Ele não começou deputado federal, nem vereador de Maceió, nem presidente da Associação de Deficientes Físicos de Alagoas, a Adefal.

Mais de duas décadas, atrás Sonia me apresentou a Gerônimo Ciqueira, aquele visionário, afável e cativante por passar tanta esperança e confiança. Foi amor à primeira vista por sua coerência, foi uma imensa admiração por sua coragem de desafiar os tabus. Cartógrafo, desenhista técnico sem braços, impossível de acreditar se não tivesse ouvido dele mesmo. Assim, Gerônimo fez sumir do meu pensamento e do de inúmeras pessoas o preconceito de tentar encaixar, de criar barreiras para quem apresenta alguma deficiência. Saíamos com a vontade de entrar na caravana quase utópica do Gerônimo e dos seus amigos da Adefal.

Surgiu um terreno num bairro afastado da cidade. Foram chegando tijolos, cimento, a parte material de uma construção nascida para ser um bem social. Foi gerada da cabeça sem limites de Gerônimo. Toda a gente que tinha contato apostava naquela proposta. Atendimentos feitos de coração por sua equipe, lutas pacíficas para levar mais aos que estavam distantes e precisavam conhecer o que ele já sabia da vida. Com toda a modéstia e despojamento de títulos e cargos, o nosso herói ganhou de novo o sertão, e a cada novo contato nosso mostrava-me no mapa os municípios visitados. A discussão era reabilitar com tudo que é direito de cada pessoa. Sheila, do ministério da Saúde, sempre esteve ao lado dessa proposta, com grande afeto por Gerônimo. Mas faltavam muitas questões técnicas e administrativas.

Com Gerônimo, os gestores dos municípios, os comerciantes e os párocos iam abrindo espaço para chamar gente discriminada e sem poder. Depois de a caravana da Adefal passar por ali, as coisas começavam a mudar, a virar núcleos, foram se entrelaçando. A iniciativa era tão afinada com o Brasil real que o governo estadual e Brasília entenderam a seriedade da empreitada. Cumpriram a sua função de celebrar convênios com as organizações do terceiro setor. Com simplicidade, surgiu uma piscina enorme, do tamanho da importância que passou a ter na vida de tantas pessoas. Servia para estimular movimentos, hidratar sonhos e mostrar aos visitantes a grandeza que Gerônimo inspirava. Sempre limpa, de um azul que continua brilhando na minha retina.

Quem milita nas causas sociais sabe que o dia-a-dia nem sempre é poético. Na Adefal não foi diferente. Os entraves burocráticos e as disputas indevidas insistiram algumas vezes e esbarraram na calma e na vontade definitiva do comandante Gerônimo. A Adefal cresceu tanto que abriu as portas para a inclusão de outros excluídos das periferias. Maceió adotou a instituição que era tanto da capital como do interior.

Numa passagem interessante, o evento DEF RIO’95 programou uma mesa-redonda para trabalhos de reabilitação baseada na comunidade. Lado a lado, a experiência bonita da prefeitura do Rio de Janeiro e a estréia do Gerônimo orador perante grandes platéias politizadas. Quem acompanhou os bastidores vai lembrar que Gerônimo e a Adefal não precisavam daquilo para trabalhar, mas todos nós precisamos aprender com eles o que é mergulhar na vida das famílias com pessoas com deficiência que vivem lá no interior. Gerônimo definiu logo que não ia descaracterizar seu trabalho, escolheu falar do jeito certo de se comunicar com a comunidade. Na hora da apresentação a assistência gostou muito, eram os profissionais da Corde, das secretarias e dos ministérios da Saúde, da Assistência Social e da Educação e um grande número de pessoas com deficiência.

Foi assim que RBC no Brasil passou a ter o nome de Adefal da gente do Gerônimo. Uma tecnologia social simples sem abrir mão dos recursos modernos, das órteses e próteses do SUS, das terapias, da capacitação profissional e do lindo projeto das hortas com poços artesianos furados onde se pensa que não existe água. Todo este trabalho corresponde à defesa ferrenha dos direitos humanos e da dignidade de cada pessoa. Por mérito, assistimos à entrega do Prêmio Direitos Humanos 2004, no Palácio do Planalto, à Adefal de Gerônimo, sob intensos aplausos.

Voltando no tempo, em uma sala de Brasília, em 2000, toca o telefone e Dr. Álvaro, com voz de puro entusiasmo, me diz: “Já sabe que Gerônimo foi eleito o vereador mais votado de Maceió?” A surpresa foi pela quantidade de votos, pois ninguém tinha dúvida sobre o reconhecimento que os eleitores manifestaram. Naquele momento, só queria achar Gerônimo para dar os parabéns. Ele estava animado e, como sempre, sereno. Qualquer biografia vai contar que foram dois mandatos municipais dignos, como deveriam ser todos.

Ele foi presidente da ONEDEF durante dois mandatos e, a partir de 2005, coordenava a recente Federação de Entidades de Deficientes Físicos. Como ninguém faz nada sozinho, Gerônimo ficou mais forte com o amor da esposa Eudócia e completou sua felicidade com o filho Tiago. Eu acho que Gerônimo Ciqueira já tinha muitos filhos e afilhados, mais outros tantos admiradores de perto e de longe, e seu sorriso dava para todo mundo.

Ana Maria eufórica anuncia que teremos Gerônimo deputado federal a partir de 2007. Muita alegria, um pouquinho de preocupação em saber que ele estaria mais tempo fora da Adefal, nesta capital de grande concorrência. Gerônimo foi eleito com 71 mil votos e um dos três menores orçamentos de campanha de todo o Brasil, assinala o Correio Braziliense. Em quase todas as suas entrevistas, reconhece que a luta será árdua, não somente pelo avião e o clima seco, mas, acima de tudo, pelo tanto a ser feito. Sabia que muitos esperavam muito de sua atuação e tinha expectativas de acertar em escala nacional.

Na posse dos parlamentares, em 1º de fevereiro, a convite do presidente da Câmara, Gerônimo da Adefal compõe a mesa e todos nós nos sentimos representados. O trabalho começa com o frenesi próprio do Congresso Nacional, escolha de gabinete, equipe e assessores, a preocupação com o projeto de lei do estatuto, que Gerônimo considerou não estar terminado e respondeu a uma jornalista que tinha preocupação com inúmeros pontos da matéria, que era muito importante para não ser mais discutida com a sociedade. Assumiu este compromisso porque sempre foi a sua bandeira trabalhar com as pessoas com deficiência.

Gerônimo me ligou no dia 15 de fevereiro quando estávamos, Niusarete e eu, no Rio de Janeiro, com a equipe da secretária Benedita da Silva. Uma breve comunicação, na qual o deputado me chamava como sempre de doutora, sem que isso nos afastasse, era de novo aquele seu jeito simples de cativar. Providências comuns, gabinetes à disposição, a parceria do início dos anos oitenta mantida. Não uníamos cargos, nem da universidade, nem das secretarias, era uma comunhão de idéias e inquietações, com respeito e afeto. Marcamos conversar em seu gabinete depois do Carnaval.

Mesmo de férias, achei que devia comentar com Gerônimo os assuntos mais urgentes. Quem atende o celular é o Luciano. O deputado estava fazendo exames de rotina e logo falaríamos. Naquele dia 7 de fevereiro, a Comissão de Direitos Humanos e Minorias aprovou o requerimento de Gerônimo e do colega Luiz Couto para a criação de Subcomissão Especial destinada a acompanhar e propor ações relacionadas às pessoas com deficiência. Foi a sua primeira iniciativa parlamentar, fiel à sua trajetória. Gerônimo enfraquecido não pode retornar a ligação. Simplesmente imaginei que era a habitual correria.

A voz preocupada da Carolina, e ao fundo a inquietação da Ana Maria, falava de internação, Gerônimo na UTI. Cabeça de médica me fez recordar algumas das complicações das deficiências nossas de cada dia. O estado não é crítico, porém é grave, respira com auxílio de equipamentos. O choro da Dócia aumenta a preocupação. É tão melhor recordar as conversas no carro em Maceió, o almoço a caminho do aeroporto, a sala dele na Adefal, o rosto alegre de Roseane, sua discípula, na reunião da OPAS em Buenos para falar de reabilitação com a comunidade de Alagoas, o orgulho de Regina que do Pará falou dias antes da conquista de Gerônimo. Mais uma vez o telefone, a notícia anunciada, o corpo de Gerônimo iria ser transladado para casa. Hora de rezar por um querido amigo que Deus chamou antes da hora.

As coordenadoras da Corde se reúnem em eventos, por terem muito em comum, sempre apoiaram o trabalho do maestro da Adefal. O grande sonho de Gerônimo era alcançada ver a reabilitação de todas as pessoas com deficiência. Tenho certeza que Sonia, Zelda, Luciana e Sheila, que sempre manifestaram carinho sem medidas pelo amigo, vão atuar na gestão da saúde com a força de Gerônimo.

A parceria mais recente entre a Adefal e a Corde foi o material institucional, impresso e em imagem digital, mostrando as ações sociais desenvolvidas pela Adefal. Ver e ouvir o depoimento de Gerônimo alivia a sua ausência, acalma um pouco a sempre presente inconformidade com o rumo das coisas.

Ao contar esta história percebo que a emoção supera tudo, não deixa que as pessoas, por terem alguma deficiência, abandonem o sublime desejo de sonhar, de fazer, de refazer cada vez com mais ousadia. Não temos tempo a perder, existem caminhos já indicados pelo nosso amigo. Os compromissos dele são os de toda a sua equipe, da sua família, dos parceiros, dos que acreditaram com ele em cidadania. Gerônimo ocupou um lugar de honra na mesa do Congresso para dizer a todos o que ele espera e merece de seus pares: agirem com ética, diálogo responsável e respeito para com as pessoas, tenham ou não deficiência. Os ensinamentos de Gerônimo da Adefal estarão eternamente na nossa lembrança.

Izabel de Loureiro Maior
Brasília, 12 de março de 2007.

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